O Ministério Público denuncia policiais envolvidos após laudo da perícia contestar a narrativa de confronto.

Três policiais que participaram da Chacina da Gamboa foram afastados das suas funções nesta sexta-feira, 24, a pedido do Ministério Público do Estado da Bahia. Segundo documento de indiciamento, o laudo pericial apontou que a narrativa de confronto, apresentada pelos policiais, foi refutada pelos peritos criminais.
A denúncia oferecida pelo Grupo de Atuação Especial Operacional em Segurança Pública (Geosp) e pela 3ª Promotoria de Justiça do Júri de Salvador foi recebida nesta quinta-feira, dia 23, pela Justiça, que acatou pedido do MP e determinou o afastamento dos policiais das funções de policiamento ostensivo pelo prazo de 180 dias. Eles também estão proibidos de irem até a Gamboa e de manter contato com testemunhas e familiares da vítima enquanto durar a instrução processual.
A versão dos policiais militares Tárcio Oliveira Nascimento, Thiago Leon Pereira Santos e Lucas dos Anjos Bacelar Dias é de que eles foram recebidos a tiros na comunidade e as mortes ocorreram durante confronto. Mas, de acordo com os peritos, os indícios encontrados no local e os laudos das armas e corpos descartam a narrativa de legítima defesa. Para o MP, o que houve foi “execução sumária contra as vítimas, com a utilização do aparato policial”.
O caso aconteceu no dia 01 de março de 2022, por volta das 03 horas da madrugada, na Comunidade da Gamboa de Baixo, em Salvador. Na ocasião, três jovens foram mortos: Alexandre Santos dos Reis, Cléverson Guimarães Cruz e Patrick Sousa Sapucaia, este último com 16 anos de idade.
Os policiais relataram que os três jovens foram atingidos pelos tiros dentro de uma residência. Mas o laudo da perícia aponta que Alexandre e Patrick foram atingidos fora da casa e arrastados para dentro, e que as poças de sangue deixadas pelas vítimas alvejadas na escadaria da Gamboa foram lavadas, no intuito de esconder os vestígios. Os corpos dos três jovens foram levados ao hospital mas suas fichas apontam que chegaram já sem vida.
Em documento enviado para o juiz, o MP alega que os policiais forjaram a cena do crime e adicionaram armas de fogo e outros objetos que pudessem ser compreendidos como dos três mortos, para sustentar a narrativa de um confronto. Mas a perícia não encontrou nenhum vestígio de resíduos de disparos de arma de fogo nas mãos dos mortos. Além disso, as armas imputadas como de Alexandre, Cléverson e Patrick apresentavam defeitos, sem condições seguras para produção de disparos.
Além de afastados do cargo, os policiais também foram proibidos de terem acesso à localidade da Gamboa e manterem contato com as testemunhas e os familiares das vítimas enquanto durar o processo. Segundo o documento do MP, um quarto policial acompanhou os PMs envolvidos nas mortes, mas na função de motorista da guarnição, e por isso não foi indiciado.
Versão das testemunhas
Segundo testemunhas do caso, os policiais chegaram no local e passaram a abordar e perseguir as vítimas Alexandre, Cleverson e Patrick, que estavam participando de uma festa. Os gritos e pedidos de socorro dos jovens chamaram atenção da comunidade. Moradores e familiares das vítimas foram ameaçados pelos policiais para que não se aproximassem do local. O documento do MP relata que a mãe de uma das vítimas foi obrigada a se afastar, sob a mira de uma arma de fogo apontada por um dos policiais, mesmo escutando seu filho clamando por socorro.
A companheira um dos jovens mortos menciona em depoimento registrado pelo MP que Cleverson, um dos mortos na Chacina, não era desconhecido de Thiago Leon, um dos policiais envolvidos. De acordo com o material produzido pelos promotores, ela relata que um ano antes da morte de seu companheiro, em março de 2021, policiais militares invadiram sua residência em busca de Cléverson e, após torturá-lo por algumas horas exigindo-lhe dinheiro, conduziram-no à Delegacia Territorial de Periperi.
Dos Crimes
O Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública – GEOSP/MPE-BA indiciou os PMs envolvidos em dois crimes: homicídio qualificado e abuso de autoridade/adulteração da cena do crime; e individualizando as condutas em dois grupos distintos. O primeiro vinculado aos crimes de homicídio qualificado:
“verifica-se que o delito de homicídio sob comento, praticado pelos denunciados contra as vítimas Cléverson, Alexandre e Patrick foi cometido por motivo torpe, pelo fato de os policiais presumirem que todas as vítimas seriam criminosos da localidade de Gamboa de Baixo e que poderiam agir ofensivamente para matá-los, diante do desvalor de suas vidas, mesmo sem que houvesse qualquer reação armada ou resistência.”
Para Wagner Moreira, coordenador do Ideas Assessoria Popular, o GEOSP inova com a tese que qualifica o “motivo torpe ". “Explicitar, qualificar como torpe, a lógica do racismo estrutural que permite o genocidio em curso no país, demonstra que o Ministério Público baiano, não se mantem hermético a décadas de criticas e militância dos diversos setores do movimento negro”, aponta Wagner.
Essa motivação relaciona a prática criminosa ao território. Para Wagner, está “associando duas premissas: a de criminalização do território (‘presumirem que todas as vítimas seriam criminosos da localidade de Gamboa’) e o de racismo (‘ diante do desvalor de suas vidas’). No Brasil a lógica que autoriza o extermínio do ‘outro’ é o racismo estrutural. O corpo negro é visto como de hierarquia inferior, e com menos resguardo juridico/institucional. Não se imagina que ao matar um “corpo branco” no seu habitat natural (um bairro de classe média ou alta) que esse crime vai ficar sem investigação. Mas essa é a regra dos territórios negros em Salvador e no Brasil, como um todo.”, aponta.
O segundo crime vincula todos os quatro policiais, está previsto na Lei dos crimes de abuso de autoridade, vinculado a seu “Art. 23. Inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente (…)”.
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