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Em uma década, Salvador e RMS perderam 20 mil vidas para a violência

Vítimas são, em sua maioria, homens, jovens e moradores da periferia: 805 jovens de 19 anos foram assassinados de 2011 a 2021


Texto: Clarissa Pachêco. Imagem: Reprodução.


É como se uma cidade inteira tivesse sumido do mapa. Não implodida, inundada ou destruída por um desastre natural, mas extinta por falta de habitantes. Em uma década, crimes violentos letais intencionais (CVLIs) tiraram a vida de mais de 20 mil pessoas em Salvador e Região Metropolitana (RMS) – tanta gente que dava para povoar uma das 13 cidades da Bahia que, segundo estimativas para 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), têm de 20 mil a 21 mil habitantes.


Uma realidade, talvez, pouco palpável para os quase 3 milhões de moradores da capital, mas bem visível para quem vive em uma dessas 13 cidades. O número de mortos entre janeiro de 2011 e junho de 2021 – 20.137 – é maior do que a população inteira de Pindobaçu, no Sertão. Esse mesmo número é pouco menor do que a população de outras cidades, como Abaré, Baixa Grande, Barra da Estiva, Maracás, Maraú, todas com população menor que 21 mil pessoas.


Desde janeiro de 2011, o CORREIO coleta dados de vítimas de mortes violentas nos boletins diários de ocorrência publicados pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP). A marca de 20 mil vidas perdidas desde então foi alcançada no dia 5 de junho de 2021: o segurança Raimundo Nunes de Souza, 53 anos, conhecido como Zabumba, foi morto a tiros em Plataforma no meio da tarde de um sábado enquanto aguardava num ponto de ônibus.


Uma faixa de idade, aliás, pouco comum entre a maior parte das vítimas nessa última década.

De 2011 a 2021, quem mais morreu vítima de violência por aqui foram homens de 17 a 26 anos. A faixa de idade com o maior número de vítimas foi a de 19 anos – 805 vidas perdidas mais de meio século antes de alcançarem a expectativa média de vida dos baianos, que era de 74,2 anos, em 2020, segundo o IBGE. Só em 2021, 29 pessoas foram assassinadas aos 19 anos.


Apenas 25 dias após a marca de 20 mil vítimas, Salvador e RMS chegaram a outro número preocupante: 1.000 vítimas de mortes violentas no ano, no dia 30 de junho – um mês antes de a marca ser alcançada em 2020, em 30 de julho. Este ano, os homens jovens também foram maioria entre as vítimas: 92,9% das primeiras mil mortes eram pessoas do sexo masculino e as dez idades com mais vítimas, de 19 a 27 anos.


A milésima delas tinha 37 e também era do sexo masculino: Valdilei Pereira Santos. Em outubro do ano passado, ele foi espancado em uma rua de Simões Filho, que acumula, este ano, 31 mortes violentas. A reportagem apurou que Valdilei passou por dois hospitais antes de morrer no último dia 30 de junho, em Salvador. Não foram encontrados processos em nome dele, nem mandados de prisão em aberto.


Quem é que morre?

Os boletins da SSP não informam a cor da pele das vítimas, mas especialistas apontam que a maior parte das pessoas que têm mortes violentas são jovens, negros e moradores da periferia – inclusive aqueles mortos por intervenção policial, que não aparecem nos boletins e, portanto, não integram a lista das mil vidas já perdidas este ano. A cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança, aponta que o fato de a marca de mil mortos ter sido alcançada um mês antes é um alerta grave, já que a situação em 2020 já não era boa.

“A Bahia está tomando um rumo na área da segurança pública que nós já sabemos para onde leva. Muitas mortes, muita violência letal por arma de fogo, sendo que as políticas de segurança estão altamente concentradas em ações repressivas, muitas operações policiais e muitas mortes”, afirma Silvia Ramos.

Ela chama a atenção para o número de chacinas e de casos traumáticos, como as mortes de Bruno e Yan Barros, no caso Atakarejo, de Viviane Soares e Maria Célia Santana, no Curuzu, e de Ryan Andrew, no Nordeste de Amaralina.


“Não são só números, mas quando nós atingimos mil vidas perdidas por violência letal, evitável, que seria prevenível, que poderiam não ter ocorrido, eu acho que isso acende um alerta”, diz Silvia.


Bairros líderes O fato de esses casos terem acontecido em bairros populares não é por acaso. É nesses locais que as pessoas vivem sob maior tensão e medo. Quatro bairros da periferia de Salvador aparecem, este ano, com mais de 20 mortes entre as primeiras mil. São Marcos, com 28,5 mil habitantes e onde 87,3% da população se autodeclara preta ou parda, lidera com 26 mortes, seguido de São Caetano (25), Valéria (23) e Fazenda Grande do Retiro (20).


Pelo menos os três últimos receberam operações policiais este ano e todos têm mais de 80% da população preta ou parda, segundo o IBGE. Em São Marcos, onde as disputas pelo tráfico acontecem no entorno, a população segue amedrontada. “Essa semana aqui, a polícia invadiu e matou seis lá na Via Regional e o povo fica ovacionando isso”, desabafa um professor que mora no bairro.


Sem se identificar, ele explica que o principal causador das mortes recentes é a disputa do tráfico.

“O motivo pelo qual mais está acontecendo mortes aqui em São Marcos é disputa de facções, são duas ou três no entorno e que ficam disputando entre si”, completa o professor.

Segundo a SSP, os índices cresceram nestes bairros por conta do tráfico. “As polícias Civil e Militar detectaram disputas entre organizações criminosas, que ocasionaram a alta dos índices”, diz nota. A pasta acrescenta que vem desenvolvendo ações de inteligência contra quadrilhas envolvidas com tráfico de drogas e homicídios nestes bairros, mesmas ações já aplicadas em Tancredo Neves, que vem reduzindo os índices.


A cientista social Luciene Santana, pesquisadora da Rede de Observatórios de Segurança na Bahia e da Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas, explica que é nesses bairros periféricos, muitas vezes apontados como violentos, que as pessoas vivem sob maior tensão.

Para ela, existe uma espécie de “motor de geração de mortes” que só funciona porque opera como uma máquina.


“Quem aperta o gatilho na ponta não aperta sozinho. Existe a legitimação da sociedade, do Legislativo, do Executivo. Qual é a ferramenta usada como justificativa? O combate e a coibição do uso de substâncias, que une pessoas negras não só porque são elas que morrem, mas porque são as que vivem tensionadas e não têm acesso à saúde, cultura, educação. Essas políticas públicas não chegam, então como é que a polícia chega?”, questiona a pesquisadora.

Políticas públicas

Para Luciene, a ausência ou a presença tímida de políticas públicas nesses bairros que mais sofrem com a violência é uma questão de escolha orçamentária.


“O orçamento nestes bairros campeões de violência estão direcionados a viaturas, a policiamento, mas não estão ligados à saúde, habitação, qualidade de vida. Isso não é por acaso. Orçamento é uma decisão pública, política. Esses outros serviços que estão em falta nessas localidades poderiam ajudar a prevenir, mas o orçamento não é direcionado nessa política”, afirma.


Os investimentos apontados pela SSP vão mesmo nesta linha:

“Anualmente novos policiais são contratados, novas viaturas compradas ou substituídas, além de reformas das estruturas. O Estado também, nos últimos anos, investiu em tecnologia com os sistemas de Reconhecimento Facial e de Placas Veiculares”, diz nota.

Por falar em políticas públicas, Silvia Ramos aponta uma preocupação observada na Bahia, mas que, segundo ela, se estende a todo o Brasil: é que as ações tomadas no campo da segurança pública independem da orientação política dos governos. Para ela, isso acontece porque as polícias criam lógicas e necessidades próprias e os governadores, que na maioria das vezes não dominam o tema, acabam reféns de políticas de segurança que só reforçam a violência.


“As polícias criam necessidades próprias e quanto mais recursos recebem, em vez de reduzir a violência, acabam produzindo mais violência. O racismo é um problema chocante das polícias no Brasil inteiro e, por incrível que pareça, a gente pensa que na Bahia, onde a presença de negros é muito relevante, poderia haver um respeito maior aos negros, mas nós verificamos que mais de 90% dos mortos pela polícia são jovens e são negros”, afirma Silvia.



Camaçari lidera mortes violentas na Região Metropolitana desde 2011: aumento de 70%


Desde 2011, a cidade de Camaçari é aquela que, entre as primeiras mil mortes violentas, lidera o número de registros na Região Metropolitana de Salvador (RMS), sempre acompanhada de perto pelos municípios de Simões Filho e Lauro de Freitas, que nos últimos anos se revezaram no terceiro lugar no ranking.


Nestes dez anos, a participação de Camaçari nas primeiras mil mortes violentas cresceu 70%. Em 2011, a cidade tinha 70 mortes violentas entre as mil. Em 2021, o número foi de 119, 49 a mais. No ano passado, o volume foi ainda maior: 124, o maior número já atingido pela cidade.

Nesse período, Camaçari acumulou 2.072 mortes de pessoas vítimas de CVLIs, com registros espalhados entre a sede e distritos como Vila de Abrantes, Barra de Pojuca e Monte Gordo. Na cidade, 92,3% das vítimas foram do sexo masculino e 9,4% tinham menos de 18 anos. Camaçari teve, entre as vítimas, até bebês de 10 meses de vida.


Já Salvador foi, ano a ano, reduzindo sua participação. Em 2011, das primeiras mil vítimas, 736 tinham sido assassinadas em Salvador. O número foi caindo até 2020, quando chegou a 613. Este ano, voltou a subir e alcançou 684 vítimas – ainda assim, queda de 7%.


A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) informou que promove ações diariamente para tentar reduzir os crimes contra a vida em Camaçari, mas há algumas dificuldades, com a extensão: a área de Camaçari é maior do que a de Salvador.


“Camaçari possui uma grande extensão territorial e a presença de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas gera disputas e mortes entre rivais. Ações com unidades territoriais e especializadas são promovidas diariamente buscando reduzir os crimes contra a vida”, diz a SSP, em nota.


Dados são coletados diariamente em boletins da SSP


Os dados utilizados para o especial anual Mil Vidas são coletados diariamente, desde 2011, no site da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), que disponibiliza boletins com ocorrências como óbitos e tentativas de homicídio. Atualmente, contudo, só há disponíveis no site os boletins a partir de 7 de abril de 2020 – os anteriores começaram a ser retirados do ar há alguns anos. A base de dados do jornal está disponível.


Em 2018, o CORREIO precisou pedir os dados do mês de agosto via Lei de Acesso à Informação, mas o pedido só foi atendido nove meses depois. As reportagens são feitas a partir dos dados dos boletins porque somente através deles é possível filtrar as informações por dia, hora, sexo, idade, bairro e até rua onde o crime aconteceu. Os dados consolidados, também disponibilizados pela SSP, não têm esse nível de detalhamento.


Não é apenas a reportagem que enfrenta dificuldades com os dados. O IDEAS Assessoria Popular, integrante do Fórum Popular de Segurança Pública da Bahia, coletou dados de mortes em decorrência da atividade policial em portais de notícia. “A ideia de coletar os dados em portais é justamente pela dificuldade de coletar os dados oficiais. Algumas vezes, a gente encontra dados oficiais e que dão números diferentes dos que os moradores dizem”, afirma Lahara Carneiro, pesquisadora do IDEAS.


Os dados vão para a 3ª Edição dos Cadernos Populares - Breves Considerações sobre os Autos de Resistência na Bahia, que está no prelo. O que as pesquisadoras Lahara Carneiro e Marcele de Oliveira e também o coordenador do IDEAS, Wagner Moreira, encontraram é que a maior parte das vítimas das mortes por intervenção policial - os autos de resistência - são jovens, negros, da periferia e que têm entre 18 e 19 anos.


“Lidar com os dados tem sido um desafio para a gente. O projeto de obscurantismo sobre os dados da segurança na Bahia é um projeto estatal, para que a gente não perceba o fosso em que a gente está mergulhado”, afirma Wagner.

Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança, o alerta anual do CORREIO é importante. “É um momento muito propício para se analisar, se repensar as políticas de segurança da Bahia. Quando você tem mil vidas perdidas nessa altura do ano, a gente pensa: o que mais está acontecendo em termos de violência? É preciso acudir, mudar o rumo, reverter políticas de segurança”, diz.

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