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Foto do escritorPPDDH-BA

Cacique Babau: “O Brasil é um país sem caráter”

Alvo de ofensas proferidas por Gilmar Mendes, o líder Tupinambá fala sobre o Marco Temporal e a autonomia indígena em entrevista para Agência Pública


Matéria de Spensy Pimentel para a Agência Pública, edição de Marina Amaral

Cacique Babau, da Aldeia Tupinambá de Olivença, na Bahia

Entre agosto e setembro, durante o julgamento do chamado “marco temporal” pelo Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes terminou por declarar seu voto pela invalidação da tese, ainda em disputa no Congresso. Ao longo das audiências, porém, o ministro causou indignação no movimento indígena ao disparar uma série de comentários considerados ofensivos, enquanto pedia apartes durante as declarações de voto de outros ministros. Um dos alvos de Mendes foi o Cacique Babau, liderança da aldeia Serra do Padeiro, uma das 22 comunidades da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, situada entre os municípios de Ilhéus, Una e Buerarema, no sul da Bahia. 


Os ataques a Babau e os Tupinambá se repetem desde que esses indígenas resolveram reivindicar a demarcação de suas terras, no início dos anos 2000, iniciando um processo de retomadas em áreas que somam 47 mil hectares. Hoje, apesar de o processo de demarcação não ter sido oficialmente concluído, eles já ocupam quase 80% dessa área, depois de ações de retomada que evoluíram para um tal grau de confrontos que, em 2014, o governo federal chegou a editar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), levando as Forças Armadas à região.


Ao longo desse processo de recuperação das terras tradicionais de seu povo, Rosivaldo Ferreira da Silva, o Cacique Babau, foi preso quatro vezes. Babau não é a única liderança indígena ameaçada na região, embora seja talvez o mais conhecido. Em 2009, numa revista do grupo Globo, foi chamado de “o Lampião Tupinambá”. 


Curiosamente, o apelido se assemelha ao que foi dado a outra liderança Tupinambá, Marcellino Alves, que nos anos 1920 liderou a oposição à construção da ponte sobre o rio Cururupe e foi chamado na imprensa de “Lampião mirim”. Também como Babau, ele foi acusado, por fazendeiros da região, de ser negro e não indígena. Por essa e por outras, o líder indígena diz, na entrevista, que a história, na região, se repete como num “looping”.  


Reconhecido na área de direitos humanos e no meio acadêmico por sua atuação como liderança indígena e defensor de direitos, Babau diz que prefere mesmo é ficar em sua casa, no belo cenário da aldeia da Serra do Padeiro. Em meio a morros e áreas remanescentes da Mata Atlântica, ele e seus companheiros plantam suas roças e cuidam das áreas de agrofloresta onde se desenvolve o cacau – carro chefe da economia da região e um dos motivos principais da disputa ferrenha que os fazendeiros locais mantêm com os Tupinambá, pois a terra indígena está repleta de áreas propícias para esse cultivo. 


Também são cobiçadas as praias da região entre Ilhéus e Una, onde os grandes condomínios avançam, enquanto o governo federal demora a ordenar a demarcação e a homologação da terra indígena, cujo relatório de identificação foi publicado em 2009.

Cacique Babau com manto Tupinambá; indumentária é considerada sagrada. Foto: Glicélia Tupinambá.

Já os Tupinambá, como diz Babau, simplesmente seguem onde sempre estiveram, desde antes da chegada dos portugueses na Costa Sul da Bahia, em 1500. Na entrevista a seguir, concedida na aldeia em que vive, com a conversa entremeada por suas risadas contagiantes, ele mostra por que é hoje uma das mais reconhecidas vozes do movimento indígena nacional. 


AP: Há poucas semanas, o sr. foi citado em meio aos debates do STF sobre o marco temporal. Muitos, talvez, não o conheçam ainda. Para esses, quem você diria que é Babau?


Babau: Eu não sei, é uma resposta…(rs)


AP: Ou melhor, então, como você se define?


Babau: Mas aí você arrumou confusão também, eu não me autodefino não. Agora: Nós, Tupinambá – aí não é Babau, é nós, Tupinambá – somos aqui do pé da Serra do Padeiro, somos os Tupinambá da mata. Existem os Tupinambá da praia e os Tupinambá da mata. Nós somos da mata. Vivemos aqui desde antes de 1500. Continuamos aqui e vivemos aqui, um grupo familiar todo. É isso. Isso é nós (risos).


AP: E você podia falar um pouco de onde você nasceu? 


Babau: [Nasci] onde você está. Todos, desde meu avô, todos nasceram aqui. Então, todo mundo, essas crianças tudo, e todos que estão aqui, os pais, os avós, todos nasceram aqui. Nunca foram de outro lugar.


AP: O que mudou de lá para cá, de quando você nasceu até agora?


Babau: Nada. Em qualquer época que você pegar, a questão é a mesma: o povo tentando tirar nós do pé da serra. Se você pegar em 1500, os anos subsequentes, é isso. Se você muda e vem pro governo Getúlio Vargas, de 1930 pra cá, também é todo mundo guerreando, eles querendo assumir essa região. Se chegar nos anos 1980, quando estavam fazendo a Constituição, conflito aqui, o povo querendo tomar essa região, e nós fazendo enfrentamento. Se chega do ano 2000 para cá também, aí sim, mas agora com uma luta mais aprofundada, e nós chegamos. 


O que mudou? Se você pegar todas as reportagens que faziam contra nós de 1926 a 1940 na imprensa, sobre os Tupinambá da Mata, vai encontrar as mesmas falas, as mesmas coisas que são publicadas hoje. Ou seja, as pessoas não inovam, elas continuam querendo desconstruir quem tem direito, porque todos querem assumir o direito do outro, que eles acham que é pobre. E tem uma coisa muito ruim no nosso país: cultura é quem tem cultura europeia, que pode tomar tudo que todo mundo tem, e os outros que não são da cultura europeia têm que perder tudo que têm… Pouca gente parou pra pensar, mas o Brasil funciona assim: todos os deputados, senadores que estão lá, se sentem europeus e acham que qualquer outro, que é nativo do Brasil, não tem direito.


AP: Quando você está falando dos anos 1930, está falando também de Marcellino?


Babau: Exatamente. Tem que saber que Marcellino não é Marcellino, Marcellino era mais de 1000 famílias juntas. É claro que ele ficou martirizado, assim como é hoje. Quantas famílias são hoje? São mais de 5.000 pessoas. Mas aparece mais o nome de Babau, né?


AP: E o que você acha que o Brasil precisava saber sobre a luta de Marcellino, sobre a luta dessa época?


Babau: Eles não precisam saber mais não, eles têm todas as informações. E porque no Brasil quem governa esconde as coisas para que eles manipulem da forma deles. Então, quando interessava a eles, a nossa luta era de comunista. Porque o comunismo fazia perder todos os direitos sobre suas terras. Hoje eles chamam as pessoas de bandidos, falam em formação de quadrilha e criam outras regras para violar direitos. E ainda dizem assim: um povo integrado deixa de pertencer. É coisa de doido, né? Que o brasileiro que fala inglês não deixa de ser brasileiro, o que fala espanhol não deixa de ser brasileiro. E por que o índio deixa de ser por falar outro idioma? Apesar de ter sido obrigado a falar outro idioma. Entendeu? Tem muita coisa que não somos nós, eles lá é que tem que explicar… E como tem documentos demais na mão deles, eles é que têm que se explicar (risos).


AP: E essa região aqui em particular, é uma região para a qual se tem uma fartura de documentos desde o século 16…


Babau: Aqui você tem documentação desde 1500. Porque é a única região que nem a Coroa portuguesa e nem o Estado brasileiro conseguiram ocupar. O coronel não conseguiu entrar porque nós impedimos. A escravidão não chegou nessa região também porque nós impedimos. Então a escravidão só chegou até o rio do Engenho, mas depois de 1545, depois de a gente ter queimado todos os outros engenhos. O único engenho que sobrou foi o Engenho de Santana, que é o único lugar, aqui nessa região nossa, onde chegou escravo africano. O restante continuou domínio dos Tupinambá sem poder ninguém interferir. E esse é o ódio supremo de todos: nunca ter conseguido mover os Tupinambá.


AP: Então é como se fosse uma repetição de uma história que acontece há muito tempo…


Babau: É isso. Você fica num looping o tempo todo, Toda hora volta a mesma coisa (rs).


AP: Qual é sua expectativa com relação à demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença?


Babau: Não tem expectativa. Aqui já está resolvido. Venha cá: durante 500 anos, quem foi que morou aqui? Nós. Alguém conseguiu nos remover um milímetro? Aquele que entrou, morreu, sumiu, desapareceu e continuamos nós. Não sei onde alguém disse que tem alguém aqui com um título de 100 anos, porque até hoje ninguém tem título aqui dentro (rs). Entendeu? É a nossa terra, uma terra muito boa, não tem como alguém mexer.


AP: Em que situações você começou a se ver, a se colocar como uma liderança nessa luta recente do povo Tupinambá?


Babau: Nós não botamos. Aí está a questão. O Tupinambá não se bota nunca como líder. Essa é a grande diferença de qualquer outra etnia. Na hora que os Encantados determinam que uma pessoa é aquela e pronto, é a ela que toca. E os outros, não adianta tentar, porque nunca vai conseguir passar as barreiras. Cada um nasce com seus dons próprios. 


Os Encantados são parte de nós, e nós somos parte deles. A nação Tupi não existe sem os Encantados. Nós não perdemos jamais nossa cultura e não podemos ser integrados à comunhão nacional porque nossa cultura não é nossa, ela pertence a imortais. Diferente dos outros que querem adquirir cultura. Nós não. Nós podemos conhecer qualquer cultura do mundo, não importa qual seja ela, sem sair daqui. Nós conhecemos o universo sem precisar sair do espaço em que estamos. Não tem como ficar identificando essas questões, porque o sabidão diz que lê uma Bíblia e constrói um Deus. Nós somos fruto de um Deus construído por Ele todo dia. Há uma diferença. A nossa sabedoria, toda vez que nós não sabemos, nós puxamos os nossos cantos que são ensinados por eles para invocá-los, e, na hora que a gente canta, eles vêm e dizem ‘A sua dúvida é essa, resolve assim. E seu próximo canto é esse’. E nós começamos a ensaiar aquele canto de volta. Então isso só quem tem somos nós (rs).


AP: Mas você se lembra do momento específico em que foi se dando conta desse chamado a ser uma liderança do seu povo?


Babau: Não, não. É assim: os velhos sentam, bota todo mundo e conversam, informam as coisas e tudo. Aqueles que conseguem daqui a um ano contar o que aconteceu, o que foi falado hoje, eles têm um dom diferente daqueles que não lembram nada depois de um mês, não é? Por exemplo, eu sei contar a história de todos que meus avós, meus bisavós contaram. Não importa qual seja ela, eu lembro. Mas quantos outros lembram? Então, essas coisas, quando você tem uma família grande, na hora que vocês sentam, ‘ah, o tal da família que lembra, busca ele’, não é isso? Não tem jeito, não é ele que se posicionou. São aqueles que não lembram da história que posicionam aquele que lembra. Chama fulano que ele lembra, que foi o pai de fulano, o avô de sicrano. E aí aquela pessoa chega e narra tudo pra todo mundo. Aí todo o mundo renova o conhecimento. Então não são as pessoas que se colocam, são os demais que colocam a pessoa. Não tem como ser diferente.


Por que o índio hoje está sofrendo tanto? Porque está querendo falar a linguagem do branco, pensando como branco, agindo como branco. E, no campo do branco, [ele] é tão trapaceiro, que só o branco vai sobreviver. E esses índios que estão no Congresso vão se tornar mais brancos do que os brancos que estão lá. 


Você pode pegar hoje o que acontece com o tal Ministério dos Povos Indígenas. Eles não perceberam que eles estão usando o ministério para matar o povo. Porque, quando você esquece sua tradição cultural, você não é mais nada.


Você é antropólogo. Você sabe que nós somos nações. Eu pertenço à maior nação que esse país já viu que é a nação Tupi. Aí tem a nação Jê, que é bastante forte, a macro Jê, que é outra bastante forte. Entre muitas outras nações, que tem os Aruak, muitas mais. Sem ter trazido esses troncos linguísticos para discutir, pode dizer que é ministro de [todos] nós? Não. Ela [a ministra Sonia Guajajara] está representando o movimento indígena, mas não as nações indígenas deste país que tem cultura, tem tradição e sabe que ninguém pode governar e dizer que nos governa sem antes fazer assembleia com os pajés e com os caciques para receber a ordem do que deve fazer. 


AP: Você acha, então, que o governo está devendo ainda algum posicionamento?…


Babau: Não, não, eu não terceirizo. Quem está devendo é o povo indígena. O governo está à disposição. Você tem três filhos, você vai atender cada um pelo que você percebe que cada um está expressando de sentimento. Agora, se eles estão esquecendo a tradição do povo, como os povos são regidos, aí nós estamos todos ferrados. E vamos sempre terceirizar a culpa para outro. E eu não terceirizo, eu sou Tupinambá, não terceirizo culpa pra ninguém. Só tem um jeito de eu perder uma guerra: se eu mesmo me sabotar (rs). Fora disso…


AP: Como você viu o julgamento do STF sobre o marco temporal? Foi uma vitória dos povos indígenas?


Babau: Não me surpreendeu em nada, não poderia ser diferente a votação. O mais grave é que lá foi dentro do esperado, mas a Câmara de Deputados, o Senado, ficam o tempo todo inventando factóides para que prorroguem as coisas e eles matem pessoas em nome de uma mudança, porque só é valorizado o rico. 


Eles falam em segurança jurídica. Então vamos ver: segurança jurídica pra quantas pessoas? Porque quem deveria ter segurança jurídica era nós, pela lei que nós temos. Eles provocam insegurança jurídica o tempo todo, a vida toda em centenas de milhares de pessoas para beneficiar um ou dois grupos. Nós não temos [interesse] dentro das terras indígenas, a não ser de pequenos grupos bilionários que querem aquelas terras, só isso. Não é todo mundo que pode minerar, que pode ter uma grande mineradora. Não é todo mundo que pode pegar e montar uma madeireira pra extrair madeira,  porque se requer muito recurso para se montar uma logística dessas. Então estamos beneficiando quem? Qual é o discurso de lá? Eu falei para o Eloy Terena [secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas], que, se eles quisessem, podiam me levar na audiência pública que eu ia contar esses casos para os próprios deputados, senadores, mas eles se tornaram políticos também, preferiram levar quem fala politicamente. 


AP: Quanto ao que foi dito no geral, no STF, você não está querendo falar a respeito, não?


Babau: Não, não, não. Porque saíram coisas boas, saiu coisa ruim, saiu coisa de todo jeito. Mas isso é um crescimento humano. Nós, seres humanos, somos dignos de aplausos, porque podemos errar e depois podemos consertar nossos erros. Nós temos essa vantagem. De poder nos posicionar contra, nos posicionar intermediários, nos posicionar a favor ou depois sentar e rever tudo. Então, essas são as linhas das coisas, e a gente não pode fazer nada pelo ódio. Se tiver de fazer, faça pela consciência (rs). Tem que ser bem consciente ao fazer.

Sessão do STF sobre a tese do marco temporal em setembro deste ano. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.

AP: Nesses trabalhos recentes que têm sido feitos sobre seu perfil nas universidades, sempre se frisa a sua luta pela educação escolar indígena. Como é que você pensa essa questão?


Babau: Se você for pegar documento do século XVI, uma das reivindicações que os Tupinambá fizeram para a coroa portuguesa foi exatamente isso: que eles montassem uma escola para ensinar a língua deles para nós, Tupinambá, para nós sabermos como eles funcionavam. Porque eles tinham aprendido a nossa língua, mas nós não tínhamos aprendido a língua deles. Então, nós temos também a educação como uma parte da guerra. Sem educação, você não vai vencer nada, nem aqui nem em lugar nenhum. Hoje nós temos que viver em um espaço de terras menores, então nós temos que trazer o pessoal para a escola, aprender como lidar com a tecnologia moderna, para que com isso nós possamos gerar renda, recurso, capacidade em um espaço menor, para que o povo continue sendo autônomo sem depender de ninguém. Porque nós na Serra ainda continuamos sendo autônomos, não dependemos de Funai, nem de governo. É claro que nós cobramos deles aquilo a que nós temos direito, mas nós sobrevivemos sem eles.


AP: A educação, então, faz parte dessa estratégia de autonomia?


Babau: Exatamente. É a base. Porque, se a gente quer tudo que é inventado, novo, não importa se é dito moderno ou de outro povo, você vai ter que ir lá estudar a tecnologia moderna para aprender, para você replicar. A gente já plantava feijão, milho e mandiva antes. Nós fazíamos ferramenta de pedra. Apareceu a de ferro, nós fomos lidar com a de ferro, que vimos que era mais eficaz. E fomos descobrir como fazer, que nós também somos ferreiros, nós sabemos fazer todo tipo de ferro (rs). Aqui o povo também é de tudo um pouco. Então, nós adquirimos a tecnologia, aprendemos, mas nós mesmo executamos. Essa é a importância. Porque, quando você não sabe, você tem que entregar tudo que você tem para aprender do outro. 


AP: Quando se fala de autonomia da comunidade, em qual modelo de autonomia você pensa? Autonomia econômica? Como seria uma autonomia política também? Como você pensa isso?


Babau: Autonomia é total. Se você está dependendo de alguma coisa, você não é autônomo. Você só pode dizer que tem autonomia quando você diz: olha, minha casa, eu governo. Nós temos autonomia de produção, autonomia energética, autonomia financeira… Nós estamos querendo registrar a marca pra botar os produtos já industrializados no mercado. Mas nós falamos, peraí, vamos conversar com o Ministério de Minas e Energia, vamos montar uma mini turbina de energia elétrica no Rio Una pra gerar nossa energia pra nós e não pagar nada para a Coelba [Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia, hoje privatizada], pra nós conseguirmos competir, senão não vamos conseguir competir. Ou seja, isso é autonomia: nós sabemos que, até pra disputar, nós temos que ter autonomia de várias coisas, senão já entramos derrotados. E o principal: autonomia de pensamento. Porque senão o outro te conduz, e você não é autônomo, se você é dominado e conduzido pelo outro.


AP: No caso da autonomia econômica, que papel joga o cacau aqui na região? Vocês estão na região que é berço do cacau no Brasil…


Babau: O cacau é um pesadelo. As pessoas confundem. O cacau retoma 80% do que ele dá. Tem que reaplicar nele, senão no ano seguinte ele não dá. Com os 20% que você fica, você não tem muito o que fazer quando isso é redistribuído entre muita gente. Depois você vai ver que você vai passar quatro, cinco meses sem ter nada ali. O que muda de autonomia é porque nós temos produções diversificadas. Elas se somam. Então, a mesma roça de cacau tem dentro uma produção de banana, tem uma produção de várias outras frutas. Nós fazemos uma roça de mandioca, nós temos o aipim, aí nós temos várias outras coisas. Ou seja, com a complexidade do que nós plantamos, não falta recurso o ano inteiro. O que nós, Tupinambá, sempre sabemos é que muitas frutas são de safra. Então nós temos que intercalar as produções para que, quando terminar a safra de uma, já tenha a outra em funcionamento. Entendeu? Senão você não consegue chegar a lugar nenhum.


AP: Quando se fala em autonomia política, o pessoal fica meio assustado aqui no Brasil, né? O que você pensa sobre esse tema?


Babau: Nós somos autônomos politicamente. Nós temos a política tupinambá, a política comunitária, da comunidade. O que é uma política autônoma? Na Aldeia Tupinambá Serra do Padeiro, temos 250 famílias. Nenhuma delas passa fome ou necessidade. Você pode olhar: você viu como as criancinhas chegam? Você viu o grau de felicidade? Foi a prefeitura, foi governo de estado, governo federal que fez isso? Não. Sabe qual é o grau de violência aqui na nossa comunidade? Zero. Sabe quando uma mulher apanhou aqui de marido, de homem? Nunca. Sabe quando uma criança foi espancada? Jamais. 


Você está entendendo? Porque a política exercida pelo pajé e pelo cacique deixa bem claro para todos que isso não é aceitável: uma violência entre familiares. Então, você tem o primeiro princípio: a cordialidade dentro do povo. “Ah, é fraco”. Não, nós somos muito valentes contra outro externo que venha mexer com nós. Isso é muito claro. 


Aí, a agricultura, nós temos autonomia. Por que nós temos? Porque nós construímos uma política para ser autônomos. Nós, vendo que tudo gera questões financeiras do branco e o branco, nós, tudo o que nós produzimos, nós criamos uma organização em que 70% são distribuídos entre as famílias e 30% ficam retidos na instituição, que é para contratar mão de obra, comprar carro, pagar advogado, fazer viagens, fazer manutenção nossa do dia a dia. 


Com isso, também, nós sabemos a renda interna por família. Nós fazemos planejamentos a cada cinco anos: a cada cinco anos nós sentamos para ver se nossa renda está caindo ou está subindo e o que precisamos fazer para que ela se equilibre. Então hoje, a renda aqui por família está em torno de R$ 3.500. É baixo. Nós consideramos baixo. Nós achamos que a média legal seria em torno de R$ 5.000, R$5.500 por família, pra ela realizar os seus sonhos. Porque nós vivemos de sonhos e de desejos. Os desejos nos quebram, e os sonhos nos edificam (rs). Então, nós Tupinambá, nós somos muito espiritualizados nessas questões. Eu chamo isso autonomia.


AP: Você está contando de várias coisas interessantes que vocês têm realizado, mas é verdade também que vocês viveram, uns dez, 15 anos atrás, um período muito complicado de criminalização das lideranças.


Babau: Não parou. A criminalização continua. Nós vivemos em um país onde as pessoas não admitem quem vive autonomamente como nós. Então, ou você está dentro de um sistema que eles exigem, porque eles querem usufruir de sua capacidade e, no momento em que você se nega, você se torna alguém para ser vencido. Quando você vê político soltar matérias contra comunidades, quando você vê juiz fazer ameaças à comunidade, então isso aí é criminalização direta, porque um formula políticas públicas, o outro julga as políticas públicas e ambos estão falando de pessoas que eles deveriam proteger, então você sabe que aí não tem lógica.


AP: No ano passado, chegaram a distribuir panfletos na época da eleição focando em vocês…


Babau: Gastaram mais de R$ 2 milhões pra falar, parece que o político era eu (rs). Bem significativo, né?


AP: Parecia que você era o candidato.


Babau: Eles não conseguem me atingir porque minha comunidade não tem vícios. Você sabe que para as comunidades que têm vícios a vida fica mais difícil. Quem gosta de beber cachaça… Quem gosta de droga… Para nós não. O nosso vício é viver em casa. A gente vive pra comer e come para viver. Diz que a função é ir para a terra bem gordinho (rs).


AP: Uma coisa que persegue vocês, também, de alguma maneira é essa ideia de tentar desqualificá-los como indígenas – como se isso fosse desqualificação -, dizendo que na verdade são negros. Como vocês encaram isso?


Babau: Primeiro nós temos que perguntar para as pessoas qual é a cor da alma. Elas conhecem? Eu sei qual é a cor da alma. Alguém sabe? Pois é, eu conheço as cores que a alma tem. Então sou mais poderoso. Eu tenho pleno poder. E quem olha a cor de pele… A cor de pele depende muito da temperatura que você determina, não significa nada. Não é muito sábio o que alguns falam. Não é que nós sejamos contraditórios. Nós somos Tupinambá. Você sabe que entre nós, Tupinambá, temos alguns que são loiros do olho azul, com 1m92, 1m95 de altura? Você sabe que nós temos uma parte dos Tupinambá que pode também chegar a 2 metros de altura e são muito negros e não têm cabelo? E nós temos outra parte de Tupinambá que chega a 1m70, 1m90 de altura, porém morenos, com cabelos longos, bem lisos? 


Nós somos a existência da criação. Que não é o que você é: é o que o Criador determina para um espírito informar de informação visual para alguém ver. Essa é uma realidade que eles desconhecem porque não conseguem evoluir. Eu vou te informar: existem duas cores que determinam a alma. A sabedoria, a ciência, a consciência e tudo de fértil é um espírito azul, uma bolinha azul linda. Se você tivesse a visão que nós temos você ia ver quando alguém morre e sai da boca da pessoa aquela luz azul. A outra parte dessa luz é entrelaçada entre vermelho e amarelo. Ela representa a dor e a consciência. Quando ela entra no corpo, você sente tanta dor, que você descobre que está vivo, entende? É a fusão das duas que forma o nosso corpo. Mas o que interessa ao criador é só essa azul. Essa aqui é a dor e a consciência monstruosa que nós temos. (rs).


AP: Nos últimos anos você tem tido cada vez mais reconhecimento público: ganhou um título de notório saber, um título de honoris causa… Será que o Brasil está mudando? Está dando um espaço que antes não existia? Como é que você vê esse reconhecimento?


Babau: Eu acho que é o seguinte: são pessoas conscientes, em lugares estratégicos. As pessoas vêm à aldeia, conhece, vê, senta com a gente, conversa. Vê a visão de mundo, o jeito de ser. Por exemplo, primeiro foi a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] do Rio de Janeiro, que me deu o Prêmio Chico Mendes de Direitos Humanos. Depois Marcelino Galo, da Assembleia Legislativa da Bahia, me deu o título de Comendador da Bahia. Aí a UNEB [Universidade do Estado da Bahia] me ofertou o título de doutor Honoris causa, e a UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] me deu agora o título de notório saber. Mas, é aquela coisa, eu falei pra eles, eu digo: não são os títulos que me definem, sou eu que defino os títulos. Porque, se eu deixar esses títulos criarem uma mentalidade de que eu sou uma pessoa sábia, eu acabei de me ferrar.


Então, se me perguntam, Rosivaldo, qual é o seu título? Eu digo desde sempre que é Cacique Babau. Eu não fui feito em universidade. Eu não vou aceitar o outro me modificar porque o outro quer meu conhecimento. Eu aceito compartilhar o conhecimento que é bom, e quando eu compartilho eu adquiro outro também (rs). Mas é melhor em casa, sem a gente sofrer muitos danos. Então, a gente não tem a ambição de competir com o branco e entrar no mundo do branco. O que nós queremos é ter o conforto que nós, Tupinambá, sempre tivemos. Trabalhar mais ou menos, viver com grande qualidade de vida (rs). 


AP: É como na Finlândia, então?


Babau: Exato. Entendeu? Nós achamos assim: se duas horas de trabalho por dia gerarem, no final do mês, no final do ano, aquela linhagem que nós [queremos], não tem por que se estressar tanto. Eu não entendi porque alguns estão dizendo que índio morre de fome, vive de Bolsa Família. Eu achei aquilo ridículo, porque é um racismo, é um preconceito tão grande, porque, se essas pessoas tivessem entrado naquelas comunidades para ver… Porque toda sociedade é assim: tem aqueles que evoluem em um nível diferente do outro. 


Eu tenho tios aqui que você vai parar o carro 1000 vezes: ‘Não, eu vou continuar a pé’. Parou: ‘Não, não, não’. Ele vai continuar andando a pé. Vai para São José a pé. Volta. Porque ele quer isso. Tem condição? Tem condição de ter. Mas ele gosta de fazer isso. E eu acho isso a coisa mais maravilhosa. Você ter direito de escolha. Tem outros que não querem fazer nada. Pronto. Vive de cesta e Bolsa Família. Agora, jogar isso em cima de todo mundo? Eu falei assim: com Joênia [Wapixana] formada, presidente da Funai, e o cara dizendo que Raposa Serra do Sol vive de cesta básica? Ele já está sendo desmentido na frente.


Nós, Tupinambá, não precisamos medir ninguém por nada. Mas nós gostamos de saber: como você trata o outro? Qual é o carinho que você tem pelo outro? Porque dinheiro, poder não vai fazer você ser educado, você tratar bem ninguém. Isso aí é a questão de caráter. 


O que precisa ser construído no Brasil é o caráter. O Brasil precisa ter um caráter, coisa que ele não tem. O Brasil é um país sem caráter. Porque eles não respeitam filhos, netos, e eles querem atropelar, vender, porque eles sonham em ser iguais a um estrangeiro. Ou poderoso igual a um estrangeiro que eles acham que devem ser. Então, isso é muito ruim: um país sem espírito próprio.


AP: Finalizando, tem mais alguma coisa que você acha que o Brasil deveria saber sobre Babau ou sobre os Tupinambá que a gente não falou aqui?


Babau: Não, dizem que o tempo fala por si. Cada coisa… Irão saber muita coisa. (rs) O tempo, o tempo vai dizer coisa demais. Tem muita coisa ainda. O tempo fala.


Eu vou dizer pra você uma coisa que eu disse pra todos os antropólogos e todos os repórteres. Quando estiver com os Tupinambá, não se apegue ao que você conversa e o que você vê. Nós somos um povo de sonhos. E pode perguntar a qualquer um o que é que acontece depois que você conta um sonho: ele se modifica. Nós não somos um povo estático.


Matéria de Spensy Pimentel para a Agência Pública, edição de Marina Amaral




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